domingo, 26 de junho de 2011

BOM DIA, ESCURIDÃO!

         Dia 23 de janeiro, quarta-feira, às nove e quarenta da manhã, estava eu, no melancólico aeroporto internacional (?) de Goiânia que, convenhamos é uma vergonha! Esperando meus filhos que voltavam do Amapá, onde passavam férias. Como cheguei cedo e o vôo para não variar atrasou e as cadeiras previsivelmente encontravam-se ocupadas, me pus a flanar pelos sofríveis espaços eternamente em reforma do aeroporto Santa Genoveva.  
        Entre uma vitrine e outra me chamou a atenção duas mulheres que riam e conversavam altos. Aparentando mais de 25 e menos que trinta e poucos anos, bonitas e bem vestidas, pareciam alheias ao atraso e pouco incomodadas com o desconforto vexatório do saguão.
            A mulher mais alta tamborilava um celular “X3 Pink”, enquanto a menor observava as fotos recém-tiradas numa máquina digital “XXX 860”, artefatos esses que davam pista de um poder aquisitivo acima da pobreza absoluta, único fator que poderia justificar o diálogo que veio a seguir.
- Amiga, arrumei emprego novo, vou trabalhar em Rondônia, numa cidade, qual mesmo o nome? Hummm Rio Branco? Manaus??? Será que é Manaus? Hum, ahh não sei...
- Mas deixa pra lá, quando eu chegar lá, eu aviso pelo orkut!
            A solução pareceu abençoada, a amiga aliviada, e ambas caíram em risadas inexplicáveis e se afastaram imersas na alegria despreocupada da ignorância.
            Eu fiquei congelada! Estática! Senti-me invadida por um cansaço secular. Eu, que costumo bradar aos céus minha quase impossibilidade de me escandalizar nesses tempos estranhos, que sobrevivi a perdas e danos irreparáveis e cujo espírito descrente e impaciente beira a tolerância zero, me vi ali perplexa com a constatação de que, duas mulheres jovens, saudáveis, bonitas e “não pobres absolutas”, desconheciam o seu próprio universo.
          Em 2005, O Instituto Paulo Montenegro (IPM), braço social do grupo IBOPE, em parceria com a ONG Ação Educativa apresentou os resultados do V Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF) mecanismo criado com o objetivo de investigar a capacidade cognitiva dos brasileiros. Verificou que apenas 26% da população brasileira na faixa de 15 a 64 anos de idade são plenamente alfabetizados. Naquela manhã, em pleno aeroporto, esses dados se confirmavam: os brasileiros em especial, os jovens, vivem á margem de sua realidade, de seu espaço, de sua cultura e dos conhecimentos mínimos sobre seu país. São minimamente alfabetizados.
         Muitos podem me definir como exagerada, mas não sou. É obrigação de um cidadão (a) conhecer a sua nação, sua aldeia, pois se não, como poderá protegê-la, cuidá-la. Já destruímos parte substancial de nosso belo planeta, em grande parte por total descompromisso e desconhecimento de suas entranhas.
         Quando se retira a bela Rio Branco do coração do Acre, despreza-se  toda uma história de lutas, conflitos e por que não heroísmo. E ao imaginá-la em Rondônia, despreza-se também um vasto território brasileiro que abriga uma profusão de conquistas, enfrentamentos, vitórias e questões agrárias, étnicas e sociais.
           E o pior dos pecados, desconhecer Manaus! Fato esse quase uma aberração. Conhecida e ambicionada mundialmente como representante máxima de ecoturismo. Manaus a “Paris dos trópicos”, a “mãe dos Deuses”, reina absoluta com seu silêncio quente e úmido de cidade incrustada entre a maior floresta tropical do mundo.
        Manaus e sua arquitetura ambiciosa, belíssima! Que nos remete ao passado glorioso do ciclo da borracha, da riqueza farta e supostamente fácil.
        Desconhecer a localização de Manaus é não saber do exótico Rio Negro e suas águas da cor do caldo do açaí macerado com as mãos, e do seu abraço amoroso com o Rio Solimões, num fenômeno inusitado e único que gera o nosso gigantesco Rio Amazonas. Como desconhecer essas peculiaridades brasileiras? Como imaginar que serão protegidas e preservadas, se uma maioria escandalosa dos brasileiros desconhecem seus encantos?
         Mais do que escandalizada, fico preocupada, um povo que não sabe é facilmente manipulável, é frágil, é refém permanente de uma elite, quase sempre predadora.
        Jovens, acordem! Saiam do orkut, do MSN, desliguem o mp3, e o vídeo game por algumas horas e comprem um Atlas, um livro, leiam uma revista, escrevam uma carta, leiam um jornal.
         Fujam da escuridão obscena da ignorância. Caso contrário, não haverá futuro nenhum.




Tânia Fonseca.
Tâniassfonseca@hotmail.com

quarta-feira, 22 de junho de 2011

O DIREITO DE NASCER.

            O nascimento é, em todas as civilizações, um acontecimento cercado de expectativas, seriedade e alegrias, afinal, trata-se da perpetuação da espécie. No ato de parir, mãe e filho encontram-se em absoluta vulnerabilidade, dependentes do bom senso e da boa vontade dos demais membros da família e do grupo em geral.
No Brasil atual, onde viver é um ato permanente de sobrevivência, nascer está se tornando uma indecência. Coitado do brasileirinho que nasce amparado por planos de saúde questionáveis ou pela rede pública de saúde. Na verdade, nascer no Brasil está se tornando um bravo ato de superação.
É vergonhoso observar o descaso com que mães humildes são tratadas na rede pública de saúde e mesmo nos hospitais de menor porte. Os profissionais e instituições, responsáveis pelo atendimento à gestação e ao parto, que deveriam amparar as mães aflitas e acolher os seus filhos, revestem-se de uma indiferença e de uma ignorância tão escandalosa que deveriam ser punidos com a reclusão e a perda do exercício da profissão.
David ia nascer em breve, sua família já tinha preparado seu cantinho, comprado roupinhas azuis e perfumado as gavetas. Mas, David não iluminou sua família com sua chegada. David e a mãe morreram, vítimas do descaso médico, afinal, David era apenas um brasileirinho simples, um a mais na estatística.
A tragédia de Manuela permitiu contornos mais elaborados. Manuela, assim, como outras três parturientes foi rejeitada na unidade materna do Hospital Miguel Couto (RJ) onde teve o endereço da maternidade a ser procurada, rabiscado nos próprios braços, pelo médico obstetra de plantão. Depois de tanta humilhação, Manuela e as outras grávidas tiveram que pegar ônibus e andar algumas quadras até serem atendidas. Manuela foi submetida a uma cesariana de urgência e sobreviveu, a filha que esperava, não.
Finalizando essa tragédia de descaso e indiferença, Manuela conseguiu voltar pra casa com vida, ainda que infinitamente mais pobre em sua humanidade e com os braços assustadoramente vazios.
Maria Vitória nasceu prematura e por negligencia dos funcionários do hospital de Itumbiara (GO) foi dada como morta. Após ser resgatada pelo pai a caminho do necrotério, lutou bravamente pela vida, por vários dias. Mas seu corpinho apesar de valente, era frágil demais e não resistiu. “O que fizeram foi uma falta de respeito com a vida dela, uma desconsideração, foi desumano!” Disse a mãe aos prantos! Alguém duvida?
O ato de nascer, de dar a luz a um novo ser é sagrado universalmente. É triste observar que no meu país o nascimento de crianças comuns está se revestindo de indiferença, descaso e omissão.
A OMS (organização Mundial da saúde) considera razoável até 20 mortes maternas por cem mil nascidos vivos. No Brasil morrem 100 mulheres por cem mil nascidos vivos, 90% pacientes do SUS. Goiana está na 9ª posição entre as capitais com as taxas de morte materna mais elevadas no Brasil. Fato que é surpreendente, haja vista nossa recente origem rural, onde o parto é um ritual capaz de agregar familiares, vizinhos, amigos e afins.
É inconcebível que uma grávida seja assistida com descaso e enfado e até agressividade. È inacreditável que ela não seja agasalhada e tenha seus temores e suas dores e inseguranças amenizadas por profissionais qualificados para isso.
Afinal, no Brasil paramos no dia 25 de Dezembro, numa festa designada Natal, para celebrarmos o nascimento incomum de um suposto menino Deus! Nascimento esse que dividiu o mundo ocidental em antes e depois e norteia os cristão há 2009 anos. Convenhamos, tempo suficiente para que as “Marias” não sejam mais ignoradas e os meninos Jesus não nasçam mais em situações tão inóspitas.
A impressão que tenho é a de que, enquanto escrevo esse artigo, inúmeras “Marias” estão parindo seus meninos (as) envoltas na indiferença e no descaso. Muitas terão suas manjedouras vazias, e muitos “Josés” choraram a ausência de ambos.
Infelizmente na vida real, não tem estrela de Belém, nem reis magos presenteadores. As tragédias da vida real, não permitem poesia. Só resta a essas famílias o pranto inconsolável e a pergunta desesperada: por quê? Por quê?


Tânia Fonseca.


taniassfonseca@hotmail.com

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O silêncio dos culpados.

Nunca antes a política brasileira esteve tão imoral, ou corrigindo, nunca antes a política brasileira esteve tão escancaradamente imoral. Somos expostos diuturnamente às mais diversas formas de canalhices possíveis dos nossos políticos. Estamos a par de seus roubos, das suas desfaçatezes e dos seus desmandos.   
Nunca antes, nossos políticos praticaram tantos desmandos com nosso dinheiro, assim, sem um pingo de vergonha na cara, sem um resquício de moral e de respeito por nós cidadãos, sempre mal assistidos e ignorados.
            Estamos exaustivamente informados da corrupção que assola a arena política atual. Então, por que nós nos calamos?  Por que não reagimos e exigimos que saiam? Que sejam punidos? Por que nós, os brasileiros, não nos mobilizamos? Não nos juntamos em grupos de 30, 40, 100 mil brasileiros cansados e ofendidos e colocamos esses políticos ladrões e ordinários para fora de nossas instituições governamentais?
O futebol com sua alegria desmedida: atrai um público, em geral, de 30 mil ou mais torcedores aguerridos e dispostos a incentivarem seus times. Os shows artísticos também arrastam multidões encantadas por ídolos quase sempre dispensáveis. E as igrejas, então, repletas de fiéis à procura de soluções mágicas e rápidas. Por que então não conseguimos invadir o congresso com 70 mil ou mais cidadãos indignados e ultrajados?
Tenho certeza que, um levante com milhares de pagadores de impostos: Portando a desrespeitada bandeira brasileira e bradando fervorosamente o nosso esquecido hino nacional e invocando a punição e exigindo o decoro e honestidade da nossa liderança, implantaria o medo na corja de ladrões que se agasalham na nossa combalida política. Forçando os líderes marginais a debandarem e a restaurarem o respeito e a dignidade necessária para lidarem com o público e o social.
Fico imaginando o senado cercado de brasileiros indignados. E Sarney e os demais safados, estupidificados, assustados como ratos. Acusando e apontando seus dedos sujos uns nos outros, se escondendo e se justificando inutilmente.   Seria o final de uma época de malandragem e o inicio de uma etapa de responsabilidade e respeito pela nação. Por que então ficamos calados e passivos?
Sociologicamente as respostas são inúmeras. Mas vou ser apenas realista. Somos um povo embalado desde a mais tenra infância, com o mantra de que, aos parentes e amigos cabem as benesses, aos outros, a lei. Aprendemos muito cedo, que em nossas cadeias a maioria é de negros, pardos e pobres. Aprendemos também que ser esperto e levar vantagem são uma virtude. Quem tem padrinho com prestígio pode muito e quem tem prestígio e dinheiro pode tudo.
No Brasil, jovens chegam à faculdade escrevendo lixo com “ch”, resultado de professores que fingem que ensinam e alunos que não se incomodam em não aprenderem. Grande parte de nossos funcionários públicos são indiferentes, incompetentes e omissos.  Isso quando não são cooptados pelo crime: medicamentos que são roubados de hospitais públicos e postos de saúdes e vendidos a preços módicos em feiras livres. Merendas que são desviadas de escolas públicas. Brinquedos que são roubados de abrigos infantis. Doações a necessitados que são espoliadas. Segundo pesquisa da Câmara de Comércio dos Estados Unidos, sete em cada 10 brasileiros compram produtos piratas. Em resumo, são crimes que acontecem porque tem toda uma rede de receptadores que são os cidadãos comuns.
No Brasil prosperam os golpes que prometem dinheiro fácil e rápido. Ou alguém acredita na inocência dos enganados nos golpes da pirâmide, do bilhete premiado e outras várias ciladas que contam com a predisposição do outro a si dar bem, sem muito esforço.
Afinal, no Brasil, o jeitinho brasileiro é uma característica positiva. Brasileiros estacionam em lugares proibidos, jogam lixo em lugares inusitados, inventam “gatos” de energia e de água. Brasileiros compram diplomas falsos, carteiras de motoristas, compram a boa vontade dos guardas. Compram carros, peças e outras mercadorias pela metade do preço, sem a mínima preocupação com suas procedências. Em resumo, existe uma tolerância e uma aceitação anormal pelo ilícito, pelo ilegal e pelo imoral. Portanto, José Sarney, Renan Calheiros e todos os outros personagens nefastos de nossa política, infelizmente representam a nossa face oculta.
No Brasil, são poucos os que podem atirar a primeira pedra.



Tânia Fonseca



quarta-feira, 15 de junho de 2011

ARAGUAIA: UM RIO PRA CHAMAR DE MEU!

Após décadas de ausência, fui rever o rio Araguaia. Decidi apresentá-lo aos meus filhos: Os gêmeos de 12 e um jovem de 20 anos, nascidos ás margens do grandioso rio Tocantins e criados as margens do também grandioso, o oceânico rio Amazonas. Portanto íntimos da doçura das praias silenciosas e quentes e de uma fauna diferenciada e abundante e do “banzeiro” preguiçoso das águas límpidas, ainda que, turvas e profundas.
As expectativas definiam-se diversas: Os gêmeos ansiavam pela aventura e o inusitado do passeio; cobiçavam a pescaria e a diversão. O mais velho, sem grande entusiasmo, pensava antes nas adversidades: distância, desconforto, mosquitos, falta das últimas notícias do Brasileirão; enfim, afligia-o a quebra dos hábitos gostosamente cultivados na modernidade. Já as minhas expectativas eram de absoluto confronto, dentre o rio da minha juventude: ainda distante e tranqüilo e o rio atual: das dragas criminosas, da devastação e do abuso turístico e ambiental.
Após décadas, fui rever o rio Araguaia. Não me permiti ir como uma turista casual, afinal, era um reencontro e os reencontros exigem uma seriedade e uma elaboração peculiar. Esperei que findasse o período da alta temporada: não queria revê-lo atropeladamente em meio a uma legião de turistas, nem sempre corretos, nem sempre cordiais com a natureza. Mas, também não queria revê-lo nos meses chuvosos, onde muito da exuberância de suas cores, creditadas ao dourado de suas areias e ao sol escaldante, se perderiam para o lúgubre de chuvas infindáveis.
Aproveitei do início da primavera e percorri exatos 485 km, até a cidade de Luís Alves, muito além de Aruanã, pouco antes de Mato Grosso. O exato lugar onde ele me foi apresentado. Chegamos sob o sol escaldante das 14:00 hs. A cidade que conheci com algumas dúzias de casas, se transformara num aglomerado extenso de hotéis e pousadas, voltadas para o turismo de pesca. Barcos e barcos se debruçavam ás margens do rio anfitrião. Não nos detivemos na cidade, como já disse - Queria reencontrar o rio das minhas lembranças – percorremos, portanto, mais 4 km, para finalmente me estender sob as areias quentes, olhar aquele “mundão de água” e me deixar envolver pelas comparações e pela nostalgia de tempos delicadamente guardados.
Surpreendeu-me constatar que, apesar de todos os abusos contra suas belezas, ele conseguiu resguardar uma “belezura” desmesurada. Era comovente presenciar a natureza resistir e contornar, explenderosamente indiferente, a presença humana. Foi um contentamento sem fim, nos depararmos com uma família de ariranhas nos encarando sem nenhum temor. Tão próximas, que temi que entrassem no barco. Vários foram os jacarés, que indiferentes, saiam das águas e se perdiam entre os troncos e as raízes expostas das matas ciliares, sem nenhuma preocupação com nossa presença. E as aves então, inúmeras, confiantes e barulhentas! Mas, o que mais me encantou e deixou as crianças em polvorosa foram os botos: brincalhões, comilões e barulhentos, que nos proporcionavam sustos gostosos e uma exultação indescritível, ainda que frustrassem em definitivo a chance de uma pescaria abundante.
Lindo, lindo, lindo! O rio Araguaia continua lindo! Nosso reencontro foi doce e respeitoso. Recolhi de suas margens inúmeros resquícios deixados por gente mau caráter: garrafas, latas, sacolas plásticas. Cada impureza que eu retirei de suas entranhas, foi como um afago, um carinho. E todo o lixo que eu não deixei, além de obrigação, foi um ato de amor.
Quando parti de Goiânia e fui viver no Pará, adotei o rio Tocantins como “meu rio”. Ás suas margens registrei fases determinante da minha vida. Nos últimos dez anos já em Macapá, adotei o rio Amazonas – e me sentia muito importante de ter em meu quintal, um rio que é um mar! – em suas águas escuras e silenciosas embalei uma década de solidão.
Agora que voltei pra casa, quero um rio pra chamar de meu. Para cuidar, mimar e proteger. Para, poeticamente, colocá-lo nos braços e lhe falar de um futuro bom: sem dragas, garimpos e devastação. Tenho a convicção de que cuidamos melhor daquilo que nos pertence, que conhecemos. O rio Araguaia agora é meu! Sou detentora de um tesouro! E sinto o imperativo de preservá-lo. Voltei preparada a me aliar a grupos dispostos a torná-lo eterno. Vou assinar protestos contra sua depredação, vou fazer manifestações e declarações sobre a urgência de protegê-lo.
Parafraseando Pessoa: O maior rio do mundo, não é o Nilo, nem o Amazonas. O maior e o mais lindo rio do mundo é o que corre, aqui, nas terras em que nasci, o meu, o seu o nosso Araguaia!






Tânia Fonseca –Tâniassfonseca@hotmail.com

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Sobre medos, maldades e monstros!

 Quando criança, várias de minhas noites, eram aterrorizadas pela imagem de uma andarilha, “Lurdes, a louca”, uma mulher doente, suja, descabelada, dentes apodrecidos e roupas enxovalhadas, em geral, um vestido largo, curto e estampado de flores encardidas e tristes.
Andava aleatoriamente pelas ruas empoeirada do bairro, gritando palavras desconexas e jogando pedras nas crianças, poucas é verdade, que ousavam a lhe fazer piadas e grosserias. Não raro, Lurdes, arrancava as roupas e saia nua pelas ruas, expondo o corpo magro, carcomido pela pobreza, pelo abandono e por doenças oportunistas. Para reforçar sua figura deprimente, Lurdes sofria crises de epilepsia, nas quais se debatia nas calçadas em espasmo grotescos, doloridos e barulhentos: momento em que era recolhida ao hospício “Adauto Botelho”, do qual ressurgia tempos depois, sempre pior e recomeçava a perambular pelo bairro, babando, gritando e pontilhando minha infância de medo e insegurança.
            Lurdes, a louca, foi a responsável pelos meus terrores noturnos, meu hábito de dormir com pais e irmãos durante toda a infância e a aversão incontrolável e permanente pela sujeira e desordem. Sua imagem merecedora de compreensão, ajuda e cuidados especiais, representava para meu desamparo infantil, o medo, o que mais perto eu julgava ter chegado da maldade.Nas minhas inseguranças de menina, Lurdes, a louca, com sua fealdade e sujidade espantava meus sonhos e enchia de sobressaltos minhas vigílias.
            Não tardou muito para que o tempo e o progresso, com suas avenidas asfaltadas, prédios, muros e casas gradeadas, dragassem, Lurdes e muitas outras figuras pitorescas de minha meninice e de uma Goiânia, hoje, existente apenas em fotos e relatos literários.
E não tardou também para que, junto com a nova cidade, me fosse apresentada toda uma gama de novos medos e inseguranças. Constato cotidianamente que a maldade que eu menina, imaginava estar em uma mulher fragilizada pela doença. Hoje se espalha epidemicamente em novos personagens. Esses sim, embebidos verdadeiramente da essência mais depurada da crueldade e violência.
 Hoje, não só minhas noites são invadidas pelos terrores, mas meus dias e minhas tarde, encontram-se permanentemente envolvidas no medo e no receio constante de que a maldade finalmente consiga tocar e devastar de forma irreversível a minha vida a de meus filhos e de pessoas queridas com as quais convivo.
Aterroriza-me grande parte dos políticos. Pessoas vilipendiosas responsáveis pela maldade ordinária da corrupção, da safadeza e arrogância. Responsáveis por doentes que morrem em hospitais depredado por suas más gestões. Responsáveis por crianças analfabetas e famintas em escolas precárias e defasadas. Responsáveis pelas mortes brutais entre cidadãos sem perspectivas e por uma segurança ineficaz e medíocre. Tenho horror de grande parte dos políticos e de suas sanhas desmedidas pelo dinheiro e vantagens pessoais. Seres asquerosos que desviam dinheiro, superfaturam toda ou qualquer atividade que deveria beneficiar a comunidade, chafurdam-se na lascívia e no desproposito do poder.
Não menos aterrorizantes são os criminosos contumazes, que invadem nossas casas, nos roubam e podem matar nossos filhos e entes queridos, assim, num espasmo de prazer sádico e banal, pouco interessados em avaliarem as conseqüências. Representantes de uma maldade atávica, universal e certamente imutável.
Não nos esqueçamos da maldade incrustada nas pessoas mais improváveis. Como aqueles indivíduos aparentemente gentis que intempestivamente jogam a filha pela janela. Ou a moça meiga e tímida que ajuda o namorado a abater os pais indefesos que dormem imersos em sonhos sem retornos. E os homens comuns e apaixonados que matam suas amadas com requintes de crueldade. E outros que as matam junto aos filhos, insensíveis aos pedidos de clemência. E a maldade inusitada de pais e mães supostamente comuns que queimam, ferem, abusam e assustam de forma indelével a vida dos filhos.
E não menos cruéis e nojentos me apavoram os imbecis que matam no trânsito; invadindo sinal vermelho, ultrapassando sem segurança e dirigindo embriagado. São também medonhos os imbecis que jogam lixo nas ruas, furam filas, procuram tirar vantagem em tudo, e espalham seu desrespeito, covardia e falta de educação, desconsiderando todos os malefícios advindo de suas atitudes nefastas.
Mas, o meu medo maior que infiltra meu ser de pavor, e me deixa gélida, é o meu monstro interior. Monstro esse, que vigio diuturnamente de formas espartana. E que, mesmo assim, às vezes, se enfurece e é responsável pelos rompantes furiosos com os quais, quando em vez, assusto meus filhos. A impaciência rude com que freqüentemente magôo meus familiares queridos. A intolerância sarcástica com a qual, muitas vezes, escandalizo meus amigos e mantenho afastados os conhecidos. A incapacidade de ser maleável e aceitar os deslizes alheios. A repulsa absoluta pela incompetência e ignorância desnecessária. E pior, a aridez incontornável do meu coração, desprovido do aconchego da fé e avesso às crenças dogmáticas e enfadonhas da religião. Um espírito desprovido de ilusões e consequentemente exigente, solitário e triste.
Quando criança, acordava apavorada por uma figura imaginária e inofensiva. Hoje, passo meu tempo de vigília dominando minha maldade secreta. E temendo que meus filhos, amigos e pessoas várias que me cercam, não tenham a mesma disciplina arraigada que eu, e que, não consigam manter adormecida ou controlada a maldade que habita no íntimo de cada um de nós. ‘            Apavora-me que eles não consigam manter sob controle, seus monstros ensandecidos, que vivem a espreita, com suas garras afiadas na tragédia, a espera do primeiro e avassalador deslize.


Tânia Fonseca
socióloga