sexta-feira, 10 de junho de 2011

Sobre medos, maldades e monstros!

 Quando criança, várias de minhas noites, eram aterrorizadas pela imagem de uma andarilha, “Lurdes, a louca”, uma mulher doente, suja, descabelada, dentes apodrecidos e roupas enxovalhadas, em geral, um vestido largo, curto e estampado de flores encardidas e tristes.
Andava aleatoriamente pelas ruas empoeirada do bairro, gritando palavras desconexas e jogando pedras nas crianças, poucas é verdade, que ousavam a lhe fazer piadas e grosserias. Não raro, Lurdes, arrancava as roupas e saia nua pelas ruas, expondo o corpo magro, carcomido pela pobreza, pelo abandono e por doenças oportunistas. Para reforçar sua figura deprimente, Lurdes sofria crises de epilepsia, nas quais se debatia nas calçadas em espasmo grotescos, doloridos e barulhentos: momento em que era recolhida ao hospício “Adauto Botelho”, do qual ressurgia tempos depois, sempre pior e recomeçava a perambular pelo bairro, babando, gritando e pontilhando minha infância de medo e insegurança.
            Lurdes, a louca, foi a responsável pelos meus terrores noturnos, meu hábito de dormir com pais e irmãos durante toda a infância e a aversão incontrolável e permanente pela sujeira e desordem. Sua imagem merecedora de compreensão, ajuda e cuidados especiais, representava para meu desamparo infantil, o medo, o que mais perto eu julgava ter chegado da maldade.Nas minhas inseguranças de menina, Lurdes, a louca, com sua fealdade e sujidade espantava meus sonhos e enchia de sobressaltos minhas vigílias.
            Não tardou muito para que o tempo e o progresso, com suas avenidas asfaltadas, prédios, muros e casas gradeadas, dragassem, Lurdes e muitas outras figuras pitorescas de minha meninice e de uma Goiânia, hoje, existente apenas em fotos e relatos literários.
E não tardou também para que, junto com a nova cidade, me fosse apresentada toda uma gama de novos medos e inseguranças. Constato cotidianamente que a maldade que eu menina, imaginava estar em uma mulher fragilizada pela doença. Hoje se espalha epidemicamente em novos personagens. Esses sim, embebidos verdadeiramente da essência mais depurada da crueldade e violência.
 Hoje, não só minhas noites são invadidas pelos terrores, mas meus dias e minhas tarde, encontram-se permanentemente envolvidas no medo e no receio constante de que a maldade finalmente consiga tocar e devastar de forma irreversível a minha vida a de meus filhos e de pessoas queridas com as quais convivo.
Aterroriza-me grande parte dos políticos. Pessoas vilipendiosas responsáveis pela maldade ordinária da corrupção, da safadeza e arrogância. Responsáveis por doentes que morrem em hospitais depredado por suas más gestões. Responsáveis por crianças analfabetas e famintas em escolas precárias e defasadas. Responsáveis pelas mortes brutais entre cidadãos sem perspectivas e por uma segurança ineficaz e medíocre. Tenho horror de grande parte dos políticos e de suas sanhas desmedidas pelo dinheiro e vantagens pessoais. Seres asquerosos que desviam dinheiro, superfaturam toda ou qualquer atividade que deveria beneficiar a comunidade, chafurdam-se na lascívia e no desproposito do poder.
Não menos aterrorizantes são os criminosos contumazes, que invadem nossas casas, nos roubam e podem matar nossos filhos e entes queridos, assim, num espasmo de prazer sádico e banal, pouco interessados em avaliarem as conseqüências. Representantes de uma maldade atávica, universal e certamente imutável.
Não nos esqueçamos da maldade incrustada nas pessoas mais improváveis. Como aqueles indivíduos aparentemente gentis que intempestivamente jogam a filha pela janela. Ou a moça meiga e tímida que ajuda o namorado a abater os pais indefesos que dormem imersos em sonhos sem retornos. E os homens comuns e apaixonados que matam suas amadas com requintes de crueldade. E outros que as matam junto aos filhos, insensíveis aos pedidos de clemência. E a maldade inusitada de pais e mães supostamente comuns que queimam, ferem, abusam e assustam de forma indelével a vida dos filhos.
E não menos cruéis e nojentos me apavoram os imbecis que matam no trânsito; invadindo sinal vermelho, ultrapassando sem segurança e dirigindo embriagado. São também medonhos os imbecis que jogam lixo nas ruas, furam filas, procuram tirar vantagem em tudo, e espalham seu desrespeito, covardia e falta de educação, desconsiderando todos os malefícios advindo de suas atitudes nefastas.
Mas, o meu medo maior que infiltra meu ser de pavor, e me deixa gélida, é o meu monstro interior. Monstro esse, que vigio diuturnamente de formas espartana. E que, mesmo assim, às vezes, se enfurece e é responsável pelos rompantes furiosos com os quais, quando em vez, assusto meus filhos. A impaciência rude com que freqüentemente magôo meus familiares queridos. A intolerância sarcástica com a qual, muitas vezes, escandalizo meus amigos e mantenho afastados os conhecidos. A incapacidade de ser maleável e aceitar os deslizes alheios. A repulsa absoluta pela incompetência e ignorância desnecessária. E pior, a aridez incontornável do meu coração, desprovido do aconchego da fé e avesso às crenças dogmáticas e enfadonhas da religião. Um espírito desprovido de ilusões e consequentemente exigente, solitário e triste.
Quando criança, acordava apavorada por uma figura imaginária e inofensiva. Hoje, passo meu tempo de vigília dominando minha maldade secreta. E temendo que meus filhos, amigos e pessoas várias que me cercam, não tenham a mesma disciplina arraigada que eu, e que, não consigam manter adormecida ou controlada a maldade que habita no íntimo de cada um de nós. ‘            Apavora-me que eles não consigam manter sob controle, seus monstros ensandecidos, que vivem a espreita, com suas garras afiadas na tragédia, a espera do primeiro e avassalador deslize.


Tânia Fonseca
socióloga






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